Quando eu era criança, costumava passar quase que diariamente numa rua, e nesta existia uma luxuosa casa, com uma colossal murada, (em comparação ao meu tamanho), e por sorte, o portão ficava entreaberto.
Do lado de fora, retesava o meu corpo para ver ao fundo na principal sala, um objeto decorativo: Um barco de madeira na media de 50cm, sobre um móvel colonial.
Meus pensamentos opulentes, criava a ideia dos moradores afortunados, naquela casa continha um atrativo para minha admiração.
Particularmente, o barco significava a coragem que eu tinha em especular uma casa que jamais me convidaria para apreciar de pertinho, todo o realce dos seus contornos e velas.
Por ser meu alvo de admiração, acabei por descobrir o nome do proprietário, era um avanço ao meu desejo de ter o momento de chegar perto e observar cada detalhe, é sabido que o impulso de uma criança é bem mais ousado do que nós adultos regulares.
Porém, para meu desapontamento, passei em frente da casa e não mais estava entreaberto o portão, estava totalmente fechado, e por meses fechado... e fechado...
Aos poucos fui examinando o significado da palavra abandono - neste seria a casa.
Com tudo, o TEMPO me fez esquecer "da menina" e o seu fascínio pelo barco.
Passadas tantas fases da minha vida, aos meus 26 anos fui visitar uma pessoa que morava numa casinha bem pequena e humilde, e o morador me conduziu ao seu quintal. Curiosa, olhei tudo ao meu redor, as árvores com frutas da época, e não me contive com uma "murada" muito baixa, inclinei para observar o quintal ao lado, e tomada por sobressalto, surpreendi-me:
“Vi o barco que fez parte dos sonhos da minha infância, próximo a uma antena SKY ambos jogados ao chão, era inverno e gotas de chuva "carimbava" sobre esses objetos; vi no passado aquele mesmo barco num cenário suntuoso, e como ele chegara ali?”
Sem muito manifesto, tratei de perguntar quem era o morador daquela casa vizinha.
Será que se tratava do mesmo? (pensei)
Esqueci minha condição de "adulta regular" e ousei como uma criança. Não poderia perder a oportunidade mesmo que tardia, criei uma situação imediatamente para me aproximar dos moradores da casa vizinha, e de primeira procurei fazer amizade, o morador não sabia do meu real interesse em simpatia. Conversei com sua esposa e seu filho alegremente na calçada mesmo, estive o tempo todo devotada aos assuntos deles, ouvindo suas histórias com interesse. (E nada de tocar no assunto marítimo).
Aos poucos fui mapeando a vida daquela família, tratava-se de um homem trabalhador, dono de armazéns de grãos, um forte comerciante, acontece que naquele momento a sua família estava passando por dificuldades financeiras e tinha perdido todos os investimentos, perdera casa, carro, armazéns... Observei a nítida esperança em se reerguer, e o que aprendera com as quedas e decepções com pessoas e sócios, foi um desabafar dos dois.
Mas a menina gritava dentro de mim: KEYLA, PEDE LOGO PRA IR AO QUINTAL DELES, PEDE...PEDE...PEDE....E eu respondia: Mas como ir?
E tome conversas e mais conversas, e por fim, ele quis comparar a simples casa que estava vivendo com sua família, com a casa que viveu por tantos anos. (ele só não imaginava que já sabia). E foi me conduzindo cômodo por cômodo, até que cheguei ao quintal, olhei fixamente o barco na direção dos meus pés.
Jogado ao chão. (Era ele mesmo)
Meus pensamentos foram confiscados, e recebi uma das lições que guardo até hoje: “Talvez! Esteja aí a minha idéia de ver valores em meio aos lixos, por que não se trata apenas de um OBJETO DESCARTADO, mas uma HISTÓRIA, uma RAZÃO FORTE para estar descartado”.
Naquele momento: O Barco + o Vento + a Chuva + o Passado+ o Luxo + o Chão = a Lição